Portas

98 – Escrita em 21.10.99, revista em 12.01.2019

Você já tentou conversar com uma porta? Posso garantir que é muito difícil. A gente vai falando, dando porquês, explicando, criando metáforas, gastando “ora vejas” e “veja bens”, aplicando todos os artifícios para cativá-la. E nada, ela fica ali, quieta, sem expressão, não diz nada, sequer um “Ã hã” de concordância. Nem mesmo um “nã, nã” de discordância.

Eu realmente não consigo conversar com uma porta. Eu já não sou de muita conversa e ela ali, imóvel. Fica difícil.

As portas são como alguns órgãos do governo, não entendem sua missão constitucional. Talvez ninguém tenha explicado a elas que sua razão de ser é abrir, deixar passar, receber o visitante, ser gentil. A porta está lá para servir, para acatar o toc toc, ser aberta e deixar passar. Do ponto de vista de quem está dentro, da mesma forma, cabe à porta abrir-se, revelar o mundo que está lá fora. Engana-se quem ache que a porta fecha, tranca. Ao contrário, sua função é abrir. Não fosse assim, em lugar de portas faziam-se paredes. Saía mais barato. Tanto é que às portas e janelas dá-se o nome genérico de aberturas. Mas há portas que não compreendem isto e insistem em ficar mudas e trancadas. Algumas, mais ranzinzas, batem e fazem um escândalo.

Eu não consigo falar com portas, mas há quem tenha esta habilidade. Cenira, minha sogra, por exemplo. Ia falando, gesticulando, contando casos e, quando se via, a porta já estava sorrindo. Claro que não passava disto, mas para uma porta muda, sorrir já estava de muito bom tamanho.

Mas como tudo, com o tempo as portas também vão se transformando. As mais antigas tinham uma pequena janela por onde se fazia o primeiro atendimento ao visitante. Com o aumento da violência e da bisbilhotagem em geral, aquelas janelinhas foram convertidas em “olhos mágicos”. Aqueles buraquinhos que de um lado se vê o outro, mas do outro não se vê o um. Funcionavam. O problema maior era quando, ao olhar quem está fora e se enxergava um olho arregalado, o visitante tentando olhar para dentro. 

Com avanço da eletrônica e a falta do que vender, criaram-se portas mais socializadas que se abrem à chegada do visitante, sem nada perguntar, sem maiores exigências. Basta chegar perto e ela, sem pudor, já vai se abrindo, justamente como uma porta deve fazer. Elas não falam ainda, mas imagino que muito breve estarão nos desejando bom dia e perguntando como vamos.

Mais gentil.

– Bom dia Dona Fernanda. Está tudo bem?

Depois emenda um “A Sra. Sabe quem esteve aqui…”

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